Quem não assistiu o filme “Jardim das Folhas Sagradas”, sob direção do cineasta baiano Pola Ribeiro, assistam. É um filme imperdível para todos (as) aqueles (as) que se preocupam com as questões religiosas em pleno século XXI. Erradamente, alguns pensadores proféticos da Modernidade, decretaram a morte da Religião como elemento propulsor da máquina terrestre racionalizadora e mortífera; mas o que me interessa aqui é discutir de como a Religião de Matriz Africana, neste caso específico, o Candomblé, foi historicizado através do Mito. Aliás, o Mito é uma narrativa poderosa de significações. Sendo assim, vejamos como um Mito Africano se re-atualizou na sociedade contemporânea, urbana, no cenário baiano, através da personagem Bomfim, protagonizada pelo autor baiano Antônio Godi.
Para aqueles que não assistiram ao filme, Bonfim é um homem negro baiano que se vê na encruzilhada, literalmente, em decidir se vai assumir o sacerdócio de um Terreiro de Candomblé em Salvador. O cargo de Babalorixá (Pai- de –Santo) é uma herança familiar que lhe foi divinizado de acordo com o jogo dos Búzios. Bonfim é um filho de Ossain, um dos Orixás mais respeitados devido a sua importância em cultuar as Folhas sagradas nos Terreiros de Candomblé. Sem essa Divindade não existe culto, pois as folhas representam a pureza; a limpeza; a cura, a magia, a natureza, o oxigênio que respiramos.
Bonfim é um negro bem sucedido profissionalmente, é gerente de um Banco, casado com uma mulher branca e evangélica. Sua angústia é dupla: tem que escolher entre assumir seu destino religioso e ou sua profissão e, ao mesmo tempo, conviver com a intolerância religiosa de sua esposa que o demoniza devido a sua inclinação para o Candomblé. No meio de tantas tensões e conflitos, vivencia, no ambiente de trabalho, discriminação racial praticada por seus colegas brancos (as); que não o aceita como negro, ocupando cargo de chefia. Diante dessas duas situações, Bonfim toma uma decisão: separa-se da mulher e abandona o emprego para viver plenamente o seu destino religioso.
Neste ínterim, Bonfim convive com várias pessoas de Santo que o incentivam a tomar tal decisão. Por outro lado, apaixona-se por um jovem branco, com o qual tem uma intensa relação amorosa. Paralelamente, inicia sua vida religiosa como Babalorixá de um Terreiro, cujo terreno foi comprado na mão de dois vigaristas, estelionatários que o engana. Compra o terreno em Salvador e inicia ali o culto aos Orixás. Uma das preocupações fundamentais do filme, o tema central, é que Bonfim como vegetariano, filho de Ossain, não aceita a matança de animais no Candomblé. Contrariando os cultos sagrados, Bonfim inaugura sua Casa de Santo e utiliza apenas como ritual, as folhas. Depois dessa atitude, a vida de Bonfim desmorona-se: seu grande amor, o jovem branco, sofre um acidente de carro e falece; sua casa de Santo pega fogo e um dos seus amigos, inclusive antropólogo, morre em decorrência do incêndio. Tais acontecimentos fazem com que Bonfim volte atrás e retome sua vida religiosa dentro dos rituais tradicionais do Candomblé.
Duas questões são relevantes, ao meu ver, que são elucidadas no filme. Uma é a forma como o cineasta trabalha com maestria as visões permeadas pelos não –candomblecistas – sobre a matança de animais no Candomblé. Geralmente, os leigos ou contestadores do Candomblé utilizam tal argumento para demonizar as práticas ritualísticas que utilizam os animais como oferendas e estes como alimentos para socialização entre as pessoas; prática inclusive corriqueira entre nós pobres mortais; a diferença é que muitos daqueles que comem carne, na atualidade, diferente do Candomblé, compartilham dos rituais de tortura recheados com muitas “bombas” de hormônios produzidas em série pelas máquinas mortíferas da sociedade moderna ocidental; aliás, deve-se registrar quanto é doloroso ver um boi ser abatido; quem vê, jamais esquece do ritual de crueldade ao qual o animal é submetido ou da perversidade que determinados animais sofrem em laboratórios experimentais da ciência; mas a ciência é racional? Deve ser por isso, que os Hindus não comem a carne do gado!
O filme problematiza esta questão a partir do olhar de dentro do Terreiro de Candomblé, sem resvalar para o campo da acusação ou da ofensa, ao contrário, o autor do filme utiliza-se da re-tualização do Mito de Ossain, Orixá das Folhas, para mostrar que a Natureza é plena de significados, que a fauna e a flora fazem parte da nossa constituição de mundo; talvez, o que precisamos é respeitar mais a quem nos dá a “carne” e o “ sangue” de Cristo.
Além disso, o mito de Ossain é o mito que contraria boa parte das Religiões que santificam ou reprimem seus mitos e suas sexualidades. Ossain, assim como o seu filho, personagem representado por Bonfim é um Orixá que tem dupla sexualidade. No filme, Bonfim era casado com uma mulher branca, depois apaixonou-se por um rapaz branco e relaciona-se sexualmente com uma mulher negra do Candomblé. Quem conhece os mitos africanos sabem que a hetero-mono-normatividade não tem seu lugar; talvez, seja por isso também, que a nossa Religião seja tão perseguida. Ela contraria a norma das evidências bárbaras colonialistas incorpadas no discurso da cristianização da sexualidade, do gênero e da raça.
O filme nos leva a uma viagem psicodérica, fora das armadilhas bilaterais que nos amarra entre o discurso construído pelo modelo dual do pecado e do profano, ao contrário, revesbera para uma linguagem mitológica que ganha força em narrativas vivas vivenciadas por um homem comum que traz no seu Odú (destino) a tarefa de nos fazer refletir sobre os inter-campos da selvageria grotesca com que aprendemos a nos relacionar com a natureza apenas como objeto de produção e sobrevivência do homem para uma relação de pensar a natureza divinizada como sujeito. É uma reflexão sobre o meio ambiente numa perspectiva inovadora, transcrita em cenas que problematizam a tríade relação: homem- criação e natureza. A eficácia simbólica do filme consiste em nos retirar da zona de conforto a que sempre nos sentimos situados em relação ao “outro” seres da natureza . Quem assistir o filme com o olhar não etnocêntrico, verá que o mito não morre. O mito, nesse caso é trans histórico, é uma narrativa sobre nós mesmos, nossos antepassados, nossas sociedades, é a forma de lermos a nossa cultura, não é uma mentira, é uma linguagem que utilizamos para dizer coisas mais profundas que nem sempre a nossa vã filosofia não consegue explicar.
Enfim, que um dia todos nós possamos viver em paz, sem invadir o espaço público de ninguém e que posamos viver no jardim das folhas e das faunas sagradas....
Ana Cláudia Lemos Pacheco
Doutora em Ciências Sociais- UNICAMP; professora de Sociologia e Antropologia do DCHL/UESB
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